Há alguns dias, uma guarnição policial militar foi empenhada em uma ocorrência de disparo de arma de fogo em via pública. No local dos fatos, os militares avistaram vários indivíduos correndo. A equipe fez a incursão em um beco, momento em que um soldado deparou com um infrator portando um revólver. O soldado determinou que o criminoso largasse o objeto ilícito, mas pelo contrário este apontou a arma em direção ao agente do Estado, que por sua vez efetuou disparos em sua própria defesa. O infrator foi neutralizado e socorrido para o hospital, onde constatou-se que ele não corria risco de morrer, pois os projéteis acertaram a perna e o braço. Ao cabo da operação policial, contabilizou-se a prisão de um homem e apreensão de dois adolescentes; além da apreensão de duas armas de fogo e farta quantidade de substâncias entorpecentes.
Em virtude desse fato, foram lavradas duas ocorrências policiais. A primeira relatando a prisão dos civis. A segunda relatando a prisão do soldado que utilizou seu instrumento de trabalho (arma de fogo) para salvar sua própria vida.
Obtive informações (não oficiais) de que o militar foi autuado em flagrante pelo crime de lesão corporal previsto no Código Penal Militar e ficou preso no quartel por três dias, quando lhe foi concedida liberdade pela Justiça Militar. O lapso temporal da prisão do soldado (embora absurdo) não é imprescindível para o debate que proponho neste espaço. O fator primordial a ser discutido é o seguinte: ERA NECESSÁRIA A RATIFICAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE DO POLICIAL MILITAR NO CASO MENCIONADO?
De pronto afirmo que não. Em que pese ser regra no âmbito castrense a imposição de prisão em flagrante em todos os crimes militares, entendo que é preciso mudar essa concepção, a qual se mostra desalinhada da ordem constitucional vigente.
A restrição da liberdade do ser humano é uma medida extrema, também denominada “última ratio”, que somente deve ser adotada quando o infrator comete crimes graves, oferece risco à sociedade ou há indícios que ele irá atrapalhar a persecução criminal. Não se deve, como pretendem alguns, aplicar o indubio pro societat para justificar a privação à liberdade de alguém sob pena de absoluto desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido surgiu a lei 9.099/95, que instituiu os juizados especiais no âmbito da Justiça Estadual. A finalidade precípua desta lei foi justamente estabelecer critérios objetivos para distinguir os crimes que merecem imediata reprimenda do Estado, mediante a imposição de prisão em flagrante, daqueles delitos que autor poderia responder a todo processo em liberdade e ao final cumprir penas substitutivas ao aprisionamento.
O principal critério objetivo que a sobredita lei nos oferece é a pena máxima cominada. Ou seja, se o tipo penal não estabelece pena superior a 2 anos de prisão, a Autoridade Policial não poderá impor prisão em flagrante, tampouco arbitrar fiança. O procedimento correto a ser feito é o TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência) com a apresentação imediata do autor do crime ao juiz competente, ou, na impossibilidade, deve-se liberar do infrator mediante o compromisso deste de comparecer em juízo.
À guisa de informação, reproduzo um fragmento do texto da lei, ipsis literis:
LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. (grifei)
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. (grifei)
É pertinente anotar que a própria lei 9.099/95 diz em seu artigo 90-A que as disposições nela contida não se aplicam no âmbito da Justiça Militar. Entretanto, atualmente essa exclusão é manifestadamente inconstitucional.
Conforme assinalei anteriormente, a Lei 9.099/95 regula os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Estadual. Ocorre que existe uma outra norma que regula o Juizado Especial no âmbito da Justiça Federa (Lei n.º 10.524/01). Este regramento não veda a aplicação dos dispositivos da lei na Justiça Militar Federal, razão pela qual pode-se dizer que é possível, por exemplo, a confecção de termo circunstanciado na esfera Militar Federal. Deste modo, conclui-se que a existência de tratamentos diferentes no âmbito da Justiça Militar Estadual e no âmbito da Justiça Militar Federal constitui afronta ao princípio da isonomia.
A justificativa para o meu entendimento acerca da ab-rogação do art. 90-A da Lei 9.099/95 com o advento da lei mais nova (Lei n.º 10.524/01 ) é assunto peculiar que exigirá texto específico para facilitar a compreensão. Por hora, cumpre registrar que o posicionamento aqui esposado é aceito e defendido por magistrados, doutrinadores e advogados que labutam na seara militar. Há alguns dias, eu conversava com o Dr. Domingos Sávio Mendonça, Cel PM da reserva da PMMG, agora atuante na defesa dos militares como causídico, tendo este se mostrado surpreso com o elevado número de policiais militares que são encarcerados ao cometerem crimes de menor potencial ofensivo.
Corroborando também com nossas ideias, o respeitado Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais aplica os dispositivos da Lei 9.099/95 aos seus jurisdicionados, sobretudo no que tange a transação penal nos crimes militares impróprios (aqueles que possuem igual definição na lei penal comum).
Após essas elucubrações, refaço a indagação: ERA NECESSÁRIA A RATIFICAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE DO SOLDADO QUE COMETEU, EM TESE, O CRIME DE LESÕES CORPORAIS DE NATUREZA LEVE? (CONFORME JÁ CITADO NÃO HAVIA ELEMENTOS PARA CARACTERIZAR LESÃO GRAVE: RISCO DE MORTE, PERDA DE MEMBRO OU FUNÇÃO ETC).
Basta analisar o artigo 209 do CPM e teremos a resposta. Vejamos:
Art. 209. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Como dito alhures, a regra nas instituições militares é a privação da liberdade dos seus membros. Por isso ainda assistimos a encarceramentos de colegas que praticaram lesões corporais leves em serviço. Caso a mesma ocorrência fosse atendida por uma equipe de policiais civis, certamente o responsável pela aplicação da lei que efetuasse o disparo de arma de fogo não seria recolhido à prisão.
É importante deixar claro que não estou levantando a bandeira da impunidade. Não estou afirmando que militares podem cometer os crimes ditos de “menor potencial ofensivo” sem serem devidamente responsabilizados. O que assevero e defendo ferrenhamente é o DIREITO DO MILITAR NÃO SER LEVADO A PRISÃO, nestes casos, por decisão da Autoridade de Polícia Judiciária.
A minha ideia baseia-se no fato de que o crime de lesão corporal não constitui delito tipicamente militar. Se estivéssemos diante de um crime militar próprio(ex: abandono de posto, dormir em serviço, recusa de obediência etc) eu até entenderia a justificativa da prisão em flagrante, mesmo tratando-se de crimes cuja pena não exceda a 2 anos de prisão. Ocorre que nesses casos está em jogo a base da instituição militar (hierarquia e disciplina).
Frise-se que ao dizer “eu até entenderia a justificativa da prisão” não significa que eu concorde. Defendo que em todos os crimes militares (próprios ou impróprios) deveria ser aplicada a regra dos delitos de menor potencial ofensivo. No entanto essa abrangência total ainda é ponto bastante controverso e merece debate mais amplo.
O que me conforta é notar que os magistrados da Justiça Militar já se adequaram a ordem constitucional brasileira, reconhecendo que deixar de aplicar os benefícios da lei 9.099/95 aos crimes militares impróprios (ex. lesão corporal leve) significa uma afronta ao princípio da isonomia previsto em nossa Carta Magna.
Sonho com dia que essa onda democrática venha a banhar nossas instituições militares, encharcando a mente dos comandantes com o mais puro senso de justiça, que é elementar em um Estado de Direito.
Sonho também, com o tempo em que nossos parlamentares irão se dar conta que toda legislação penal militar precisa ser aperfeiçoada; uma vez que foi produzida em época conturbada da história brasileira, bem diferente do atual Estado Democrático que somos tão instados a defender.
Por fim, eu não poderia deixar de desabafar: “se o soldado estivesse de folga, utilizando arma particular e praticasse o crime de lesão corporal em sua própria defesa, ele não seria recolhido à prisão. Mas para infelicidade dele, estava a serviço da sociedade e por isso; só por isso, não voltou para casa naquele dia”.
* Nivaldo de Carvalho Júnior, 2º Sgt PM, e bacharelando em Direito pelo Ce
ntro Universitário de Sete Lagoas
Fonte: www.universopolicial.com
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